Por Redação Acontece Entorno
Luziânia (GO), 6 de agosto de 2025
Em meio às paisagens do Cerrado goiano, um antigo caminho de pedras começa a ganhar novo significado. A Trilha dos Escravos, localizada no bairro Jofre Parada, no centro de Luziânia (GO), está deixando de ser apenas um vestígio do passado para se tornar um potente símbolo de resgate histórico, educação e valorização da cultura afro-brasileira.
Com cerca de 42 quilômetros de extensão, o percurso foi aberto no século XVIII por mãos escravizadas que, sob ordens de fazendeiros e mineradores da região, cortaram morros inteiros de pedra para construir um canal de água ligando as nascentes de Saia Velha às áreas conhecidas como Terras Altas — onde se concentravam minas de ouro e casarões da elite.
O historiador José Alfio, pesquisador e presidente da ONG Proteger, é um dos principais nomes à frente da preservação da memória local. Ele também é fundador do Museu da Memória de Luziânia, que abriga mais de 200 peças históricas e relatos sobre o ciclo do ouro e a formação da cidade.
Segundo Alfio, o nome “Trilha dos Escravos” passou a ser usado recentemente, após a redescoberta do trajeto por ciclistas da região. Mas a origem da trilha remonta ao período colonial, quando dois coronéis locais, José Pereira Lisboa e João Pereira Guimarães, disputavam poder e território. A construção da trilha surgiu como uma solução prática para canalizar água até as minas, facilitando o processo de lavagem do cascalho aurífero.
“O que hoje é trilha para lazer e esporte já foi cenário de sofrimento e esforço forçado. Mas também é espaço de memória e resistência que precisa ser reconhecido e preservado”, afirma Alfio.
Documentos históricos e relatos locais revelam que a disputa entre os coronéis culminou em episódios marcantes. Após a conclusão do canal, uma cerimônia simbólica conhecida como a “inauguração das cabaças” gerou polêmica: frutos do Cerrado foram lançados como boias no dique recém-construído, descendo até a antiga Rua do Rosário, em Luziânia.
Populares entoaram uma cantiga provocativa contra o coronel Lisboa: “A cabaça não traz água, mas a água traz a cabaça”. Ofendido, o coronel teria reagido com violência, sendo preso e deportado para Portugal. O episódio é citado em obras como O Monarca de Santa Luzia, de Geomires Reis, e nos escritos do historiador José de Belo Alves.
Apesar da carga histórica e simbólica, a Trilha dos Escravos ainda é pouco explorada como patrimônio turístico-cultural. Para Alfio e outros defensores da causa, a valorização da trilha pode transformar o local em uma ferramenta poderosa de formação para as novas gerações.
“A juventude precisa entender que ali há muito mais que um trajeto ecológico. É um lugar que fala sobre luta, sobre passado e sobre identidade. Já sugerimos oficinas, painéis informativos, visitas escolares e até uma tirolesa educativa como atrativo complementar”, explica.
A trilha preserva inscrições nas pedras feitas pelos próprios escravizados, além de elementos da vegetação original do Cerrado, tornando-se ideal para educação ambiental e histórica integrada.
Para garantir a continuidade desse trabalho, a ONG Proteger e o Museu de Luziânia receberam um terreno da Prefeitura para a construção de uma nova sede no bairro Aeroclube. O projeto arquitetônico já está em andamento com apoio do Instituto Federal de Goiás (IFG).
Um dos destaques será a fachada em formato de cabaça, com painéis em braile e espaços dedicados à história da Trilha dos Escravos. A proposta busca recursos por meio de editais públicos, Lei Rouanet e emendas parlamentares.
Além da preservação física, o trabalho da ONG inclui oficinas de arte, teatro e leitura voltadas a escolas públicas, levando as crianças a refletirem sobre o papel dos povos africanos na formação da cidade. Alfio acredita que a arte é uma ponte entre a juventude e o passado.
“Como os ciclistas redescobriram a trilha, queremos que os jovens redescubram sua história. Essa memória não pode morrer”, finaliza o historiador.
A Trilha dos Escravos, silenciosa por séculos, agora ressurge como um grito de memória viva. Em tempos de apagamento histórico, Luziânia tem em mãos a chance de transformar um símbolo de dor em um ponto de partida para conhecimento, identidade e valorização da ancestralidade.

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